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Sua depressão te ama

07/12/2018

Marcelo Zorzanelli

 

Como todo bom deprimido, muitas vezes eu me sinto desconfortável perto de pessoas. Infelizmente, quase a totalidade da humanidade é feita de pessoas. Nos momentos mais difíceis, sempre tive mais dificuldade em estar no mesmo lugar que uma pessoa em especial: a mesma pessoa que digita essas palavras (sou eu mesmo que estou digitando, não tenho dinheiro para secretária ou taquígrafo).

 

Aí é que está. Você se odeia porque não está falando a mesma língua que você mesmo, parece um daqueles diálogos neuróticos do Woody Allen. Tem uma coisa dentro de você que te ama mais do que você poderia imaginar. Ela quer preservar sua integridade física e psicológica, e também que você seja uma pessoa melhor, que se exercita, come melhor, deixa de pedir para as pessoas te seguirem de volta no Instagram…

 

O que ela mais quer que você faça é ter ligações de qualidade com a família, amigos, colegas de trabalho, desconhecidos, bolsonaristas… Quando você deixa de tentar fazer o trabalho para tê-las, e se perde com substitutos como o consumismo, drogas lícitas e ilícitas, comportamentos arriscados, compulsão por dinheiro e carreira, essa parte de você que você desconhece chega para por ordem na casa.

 

Pelo menos é assim que funciona para mim. Eu intuía essas coisas, mas a descoberta do trabalho do psicoterapeuta canadense Gabor Maté foi um daqueles momentos em que você se senta no meio fio e começa a chorar de alegria e de “por que não fiquei sabendo disso antes?”

 

Bom, não dava para saber muito antes porque é muito nova essa linha da psicologia que une os avanços dos estudos neurológicos, teorias sobre o efeito dos traumas no equilíbrio dos neurotransmissores e o efeito do ambiente na ativação de caminhos neurais.

 

A depressão talvez não seja nem uma doença, mas um sintoma de traumas cuja existência a psiquê não suporta. Quando você esconde muito lixo dentro de um armário, um dia a porta arrebenta. Há uma hipótese de que a depressão seja uma forma do organismo se fechar para melhor cuidar de ataques internos como viroses ou gripes. A depressão quer o seu melhor.

 

Em um certo nível, até a intenção de se suicidar é seu cérebro querendo o melhor para você: diante da dor desconhecida que parece não ter solução, acabar com tudo parece ser única opção. Esses mecanismos de autoproteção querem o seu bem, mas ninguém disse que eles são inteligentes. Eles são tão inteligentes como um cachorro ou um camaleão. Literalmente.

 

A depressão e a ansiedade, de acordo com as hipóteses mais novas, estão ligadas a partes do nosso cérebro que dividimos com mamíferos e répteis. O cérebro reptiliano, mais antigo, controla nosso instinto de lutar ou correr. Como não tem a complexidade do lobo frontal, não tem noção de tempo e carrega traumas antigos para sempre, ou pelo menos até você começar a fazer algum trabalho para apaziguar essas emoções primitivas. O cérebro mamífero é um pouco mais avançado e é responsável por nossa fissura por formar grupos, buscar proteção nos outros, querer influenciar, buscar afeto, proteger o que é nosso. Tudo isso a grosso modo, gente. O quadro todo é mais complexo e fascinante do que um amador meio deprimido poderia explicar numa quinta-feira um pouco melancólica.

 

O caminho para ouvir essas estruturas que têm a chave da farmácia interna que libera as substâncias que nos fazem sentir bem ou um lixo é um mistério pessoal e intransferível. Mas sempre há ajuda. Você está deprimido porque algo dentro de você está certo, é precioso e entende melhor um ambiente disfuncional do que as outras pessoas. Algo que tem mais sensibilidade para captar injustiças (com você e com os outros) e quer que você realize seu potencial.

 

O problema é o caminho para se livrar do lixo. Vai tirando um pouquinho de cada vez. O importante é fazer alguma coisa todo dia. Dê um abraço em alguém, sinta a beleza desse ato natural e digno. Também não deixe de se informar. Comece vendo esta palestra de Gabor Maté traduzida para o português. Há também este TED Talk de 2012 com legendas em nossa língua.

 

Como toda coisa teoricamente simples (levar um ser humano a Marte, viver em paz dentro de casa), ouvir o que sua depressão tem a dizer e conseguir colocar isso em prática também exige planejamento, paciência, coragem e persistência. E um pouquinho de senso de humor, né, seu imprestável!



Fonte: Folha de S. Paulo | Portal da Enfermagem
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