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A masculinidade tóxica vista na Rússia é um problema de saúde pública

22/06/2018

Os homens estão radiantes, a jovem russa sorri com surpresa e se deixa levar pela vibração do momento. O bom humor vai beirando o êxtase a cada grito que explode no grupo de brasileiros. A mulher não entende o que era dito sobre ela, mas ainda assim entra na brincadeira, sorri e pula. Por fim, vai cada um para o seu lado. Não há mal algum na cena.

 

A não ser, claro, que os próprios homens que abusaram da confiança e da dignidade de uma desconhecida não tivessem, eles mesmos, gravado e espalhado a prova nas redes sociais. Aconteceu mais seis vezes, até o fechamento deste texto, da mesma forma. A boçalidade viralizou. Mais três grupos de homens brasileiros e pelo menos mais três de latino-americanos. Homens adultos cometendo atos repugnantes contra cidadãs do país que lhes acolhe para uma festa.

 

Não vou descrever o que foi dito porque já vimos e ouvimos o suficiente. Acho que há, mais uma vez, um linchamento e uma perseguição contra os homens identificados. Escrevo para dizer que, na minha opinião, não é por aí. Eles merecem punição, mas fruto de uma discussão maior.Que, na minha opinião, é a discussão sobre os costumes e estigmas que levam os homens a não evoluir emocionalmente. Ou a evoluir para se tornarem grandes adolescentes mimados. Há algum tempo, conheci o conceito de “masculinidade tóxica”.

 

A masculinidade tóxica, segundo teóricos da psicologia, é o processo que em nossa sociedade se inicia na educação dos meninos. Nós, homens, somos ensinados pela família e pela sociedade a reprimir qualquer sentimento que não seja a competitividade e a agressividade. Coisa de homem é comer todo mundo e sair dando porrada. Ter um carrão, beber até cair (mas não cair), ter uma mulher para casar e outra para namorar, assobiar para todo mundo na rua e dar cinco sem tirar.

 

Terry Kupers, professor emérito de psiquiatria do Instituto Wright, define-a como “a constelação de hábitos socialmente regressivos que servem para eternizar a dominação, a desvalorização das mulheres, a homofobia e a violência injustificada”. A masculinidade tóxica surge da repressão da natureza humana. As expectativas que recaem sobre os meninos na infância geram pequenos monstros desde cedo.

 

Nossa sociedade restrige a gama de emoções que o menino pode sentir. O mecanismo de defesa é o assédio, a promiscuidade e a comunicação através da intimidação física. O bullying é uma das principais expressões da masculinidade tóxica. E o que aconteceu em Rostov com a jovem de tailler azul é, numa interpretação muito condescendente, no mínimo bullying.

 

Neste caso, a masculinidade tóxica resultou em uma ocorrência leve. Mas ela é a força por trás dos atos que se tornam mais comuns na medida em que as mulheres avançam na pauta da igualdade de tratamento. E é aí que entra a saúde mental. Quantos gestos de homens “desesperados” que agrediram mulheres não entraram na conta da normalização desta masculinidade tóxica com os anos?

 

Depressão, pensamentos intrusivos, alcoolismo, uso de drogas, bipolaridade e outros transtornos mentais acabam nem sendo investigados porque o homem que “ama demais”, ah, ele faz coisas irracionais… Uma das coisas que o homem não pode fazer porque é feio é admitir que precisa de ajuda para tratar de sua cabeça. Que vai ao psicólogo, toma remédios controlados. Até outro dia, era, com o perdão da expressão retrógrada, como chamar de veado. Ou brocha. Ou fraco. Você vê como tudo se liga.

 

No fundo, o que move os homens que cometeram assédio na Rússia e o rapaz que agride a namorada na periferia de Osasco é um problema de autoestima. Medo de não ser o que mandaram ser. E o desenrolar do medo é a agressividade, o machismo, o autoritarismo.

 

O mal está feito. Temos, e eu estou muito incluído nela, mais uma geração de trogloditas em potencial. Foi assim que eu aprendi na infância nos anos 80 e 90. Sem o privilégio de uma depressão grave, eu não teria tido que buscar a empatia como caminho para sair do buraco. Não teria aguçado a curiosidade em ouvir pessoas que eu nem sabia que existiam para descobrir que minhas certezas eram ruins. Ainda assim, há não muito tempo, deixei minha doença sair de controle e assisti a mim mesmo me transformando num macho tóxico com uma ex, e por isso tento me desculpar. Muito embora no momento eu achasse que estava fazendo tudo certo. Enfim.

 

Temos que criar condições para que as pessoas se tratem. E, mais que tudo, temos começar a ensinar coisas diferentes aos nossos meninos. Porque, sozinhos, achando que a única masculinidade é esta que tudo pode dominar  “porque sempre foi assim”, eles estão lascados. Voltando às cenas de assédio na Rússia: como é patético serem eles próprios a espalhar as provas que os condenaram no tribunal da internet (alguns, ouvi, perderam o emprego).

 

Isso porque “ser homem” é ter troféus. Não adianta ter, é preciso esfregar na cara. A velha piada do sujeito que acaba numa ilha deserta com a Sharon Stone (eu disse que a piada é antiga) e, depois de semanas de sexo (a piada não explica como os dois se apaixonaram e supõe que se você esta isolado com uma mulher, ela vai te dar), enfim, depois de semanas de idílio o sujeito se aborrece com a Sharon e pede que ela se fantasie de homem, com bigode de fibra de coco e tudo. A atriz então é convidada a dar uma volta. Passa um tempo e o sujeito da piada encontra o “homem” (é a Sharon) e diz: “Fulano, você não sabe quem eu tou comendo!”

 

Trofeus são objetos sem valor, por definição são apenas símbolos. É assim que queremos ter nossas mulheres? Sem capacidade de entender a língua, apenas sorrindo, louras e com a boceta rosa? (Eu disse que não ia repetir, mas escapou). Se você é homem, se está se sentindo ameaçado e não gosta de pensar em termos de certo e errado a respeito desta enorme discussão da igualdade de gênero, pense assim: existe um grupo querendo existir em paz e outro que persegue e rouba a paz do primeiro. Qual dos dois precisa de proteção? E qual precisa mudar de atitude?

 

Acredito que o feminismo seja o maior amigo do homem. O inimigo do macho são as normas que afunilam suas chances de ser o que quiser e o aprisionam. O feminismo ensina liberdade. Homens: temos algo a aprender com isso aí.


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Fonte: Folha de S. Paulo | Portal da Enfermagem
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